*Demetrius Gomes Lopes e Rodrigo Garcia Vilardi
Ao que parece, no Brasil, alguns acham que inteligência é “propriedade” e, portanto, deve ter “dono” ou “cercas” de modo que possa ser “usufruída” apenas por “alguns” “privilegiados”. Ainda que absurda, esta ideia parece ter sido o cerne do argumento apresentado justamente por dois professores universitários de uma da mais renomadas Universidades do Brasil, a PUC-Rio.
O raciocínio equivocado a respeito da “exclusividade” da Inteligência, contrário à própria Constituição e extremamente prejudicial à sociedade brasileira, foi recentemente apresentado em texto publicado no site Consultor Jurídico, importante espaço de reflexões e difusão de conhecimento na área jurídica e demais ciências correlatas. Por óbvio que o problema não está na publicação de diferentes pontos de vista, pelo contrário, a divulgação de posicionamentos e perspectivas divergentes é um dos motores do debate democrático de ideias e pensamentos e suscita a correspondente possibilidade de contrapontos, exatemente o que se pretende apresentar nas linhas a seguir.
De plano, causa estranheza a ideia de que a “exclusividade” da atividade de inteligência estaria vinculada à investigação criminal que, na visão daqueles professores, seria também exclusiva das polícias civis. E mais do que isso, causa espécie a compreensão de que essa aparente “reserva de mercado” seria algo bom para a sociedade.
Na verdade, a investigação de crimes nada mais é do que a ação de coletar elementos de prova com o objetivo de elucidar infrações penais, buscando-se evidências de que eles ocorreram, se ocorreram, e de quem foi seu autor para, a partir de então, iniciar-se um o processo criminal na acepção técnica do termo.
Cabe lembrar que a investigação criminal, em regra, é uma atividade de natureza administrativa (ainda que destinada ao exercício da função jurisdicional) não exclusiva e informal. Exemplo disso é a validade, inclusive, de investigações realizadas por particulares. Não são raros casos em que a própria vítima ou sua família, diante da inexistência ou ineficácia de investigações oficiais, coletam, por si, elementos de provas, identificam testemunhas, imagens e outras informações que possibilitam a identificação e prisão do autor de um crime. No mesmo sentido pode-se citar a especialização de área da imprensa denominada “jornalismo investigativo”, cujas matérias e elementos nela coligidos tem propiciado até mesmo ações diretas do Ministério Público dada a quantidade e qualidade das informações obtidas – autoria e materialidade comprovadas por filmagens, fotos e entrevistas.
Ou seja, não há cabimento em defender a ilegalidade (constitucional ou não) de investigações realizadas por qualquer agente público visto ser lícito a qualquer pessoa do povo a atividade de coleta de elementos de provas a respeito de um crime, sendo vedado apenas que tais elementos sejam produzidos, coletados, obtidos, por meios ilícitos, independentemente de quem ou qual órgão esteja investigando.
Não há dúvidas que dentro da estrutura administrativa do Estado, especialmente do Poder Executivo, são estabelecidas atribuições (e não competências jurisdicionais) a alguns órgãos policiais para exercer, prioritariamente, a investigação de crimes, contudo, esta definição constitucional não se confunde com “exclusividade” correspondendo, sim, à melhor organização funcional dos recursos humanos e materiais empregados pelo Estado para o exercício de seus poderes e funções. O sucesso de diversas operações divulgadas nos últimos anos concretizadas pelas polícias civis estaduais e pela Polícia Federal demonstram a importância e efetividade da existência de órgãos policiais especializados na investigação criminal, especialmente em relação ao combate ao crime organizado, mas especialização e prioridade não se confunde com “exclusividade”, o que geraria, ao invés de benefícios, engessamento e severos prejuízos a todos os brasileiros.
Aliás, a ideia de que apenas algumas polícias poderiam investigar crimes persiste apenas na visão de alguns juristas brasileiros pois em praticamente todo o planeta, nos mais diversos países, a investigação de crimes é inerente à qualquer instituição policial, desde pequenas “guardas universitárias” até forças policiais locais, regionais ou nacionais, sejam elas civis ou militares – sim, também ao contrário do que muitos especialistas acreditam, ou fingem acreditar, há diversas outra polícias militares ou militarizadas no mundo, resultado da proliferação do modelo francês de estruturação dos corpos de polícia (BAYLEY, 2017) .
Afora a comparação com os modelos consolidados no âmbito internacional, aqui no Brasil não apenas o Supremo Tribunal Federal já afastou de modo claro e contundente a absurda tese de “exclusividade” da investigação criminal a exemplo das decisões proferidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4318 e no Recurso Extraordinário (RE) 593727 (com repercussão geral) como a própria sociedade, nas ruas e em um dos mais impressionantes movimentos democráticos da história do Brasil contra a corrupção, rechaçou a jurássica ideia de limitar ainda mais a investigação de crimes no país ao ecoar um sonoro NÃO à malsinada “PEC 37”, cuja finalidade era exatamente conferir exclusividade de investigação criminal a “determinados” e “específicos” órgãos e “classes”, em uma tentativa clara de “deixar tudo como está” e impedir avanços no combate ao crime, auferidos nos últimos anos e muito bem simbolizados pelos resultados da operação “Lava-Jato”.
O “grito” da sociedade contra estas “amarras” à eficiência e à eficácia do sistema de persecução penal e justiça criminal foi absolutamente compreensível. Ora, tentar limitar a investigação de crimes em um país no qual cerca de 95% dos roubos não são, sequer, investigados, deveria ser apenas uma piada de mau gosto. Deveria.
Mas pelo jeito não é, ao menos para os dois professores ouvidos pelo Consultor Jurídico. Incompreensivelmente, ao invés de compreenderem as necessidades da população brasileira e, por meio da atividade acadêmica, buscarem mudanças estruturais necessárias à resolução dos pífios índices de investigação criminal do país, que ampliam, anualmente, a impunidade de milhares de criminosos, ambos parecem não apenas entender que o atual cenário caótico seria o almejado pela Constituição Cidadã como ainda, não satisfeitos, buscam ampliar o problema com a equivocada tentativa de “enclausurar” a atividade de inteligência nos mesmos moldes formais pelos quais defendem estar limitada a investigação criminal. Talvez acreditem que, tal qual os percentuais de esclarecimento de roubos no país, utilizar apenas 5% da Inteligência no combate ao crime e melhoria da segurança pública seja algo bom para todos nós.
A simples demonstração de que é falsa a ideia de que a investigação criminal só poderia ser realizada pelas polícias civis, modelo sob o qual os dois professores fundamentaram seu raciocínio a respeito da limitação da atividade de inteligência e que foi rechaçado pelo Poder Judiciário e pelo povo nas ruas, já seria suficiente para afastar a tese por eles defendida. Contudo, mesmo na hipótese de se discordar e desconsiderar tudo o que até aqui foi apresentado e defender-se, sabe-se lá porquê, uma ilegal, ineficaz e ineficiente “exclusividade” a respeito da investigação criminal, ainda assim, o raciocínio não poderia ser estendido à atividade de inteligência, por um motivo simples: “Inteligência policial” ou de “segurança pública” não se confunde com “investigação criminal”.
Essa confusão conceitual, de compreender como sinônimas as atividades de inteligência e de investigação, é um dos erros mais básicos e primários cometidos, principalmente, por penalistas, como parece ser o caso dos dois professores, provavelmente em decorrência do viés jurídico-formal proporcionado pelas próprias formações acadêmicas.
As origens da atividade de Inteligência confundem-se com a própria evolução da civilização. Por sua eficiência e eficácia comprovada no decorrer dos anos foi incorporada por todas as nações, sem exceções. Em nossos dias o termo foi empregado em inúmeras atividades tais como: inteligência competitiva, inteligência corporativa, inteligência emocional, inteligência estratégica.
No Brasil o conceito de inteligência está definido na Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999, que instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), e criou a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN:
§ 2o Para os efeitos de aplicação desta Lei, entende-se como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentosdentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado (grifo nosso).
Já o Decreto Nº 3.695, de 21 de dezembro de 2000, criou o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, no âmbito do SISBIN, sendo, a partir de então, iniciado um processo de integração ao sistema de outros órgãos da administração pública:
Imagem 1: histórico do Sistema Brasileiro de Inteligência – SISBIN
Fonte: ABIN
Caso a tese dos professores da PUC-Rio fosse verdadeira, a própria Agencia Brasileira de Inteligência (ABIN) estaria proibida de executar suas atividades, vez que não possui entre suas atribuições a competência para “investigar”.
A postura, aparentemente preconceituosa dos referidos docentes não é inédita. Em razão de suas origens, os organismos de inteligência são alvo de uma visão enviesada e tem sua imagem associada a ideia de “segurança do estado”, invariavelmente confundidas com a “inteligência clássica”. Não seria diferente na experiência brasileira.
Não obstante, segundo CEPIK (2003) o crescimento das organizações criminosas e os crimes cibernéticos ganharam relevância na agenda de segurança de vários países, resultando na busca por informações não alcançadas pelos limites da investigação criminal tradicional. Esse novo cenário levou ao desenvolvimento da inteligência de segurança (security intelligence).
A complexidade do fenômeno criminal e seua extensão à diversas atividades da vida moderna, gera instabilidade e intranquilidade à sociedade. Assim, também a criminalidade de massa – roubos, furtos, desordens urbanas – apresenta-se como desafio cada vez maior aos organismos policiais modernos, o que reforça a demanda pelo desenvolvimento da atividade de inteligência.
Não por acaso as Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, consolidaram o conceito de inteligência policial como a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro do território nacional, sobre o fenômeno criminal de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e o normal funcionamento das instituições democráticas.
Destaca-se que o limite da atividade de inteligência nas Polícias Militares, não se confunde com a “inteligência de estado”, encontrando-se circunscrita ao mandado constitucional que definiu suas atribuições legais – o exercício da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública . Ou seja, não há que se falar em extrapolação de atribuições legais, tampouco atividade ilegal ou ilegítima a execução das ações de coleta de dados afetos a segurança pública.
Em São Paulo, por exemplo, o incremento da atividade de Inteligência Policial no âmbito da Polícia Militar nos últimos vinte anos foi essencial para que unidades fossem reestruturadas, procedimentos aperfeiçoados e resultados positivos para a sociedade, alcançados.
O desenvolvimento da atividade de Inteligência Policial pela Polícia Militar em todo o Estado propiciou o desenvolvimento de ferramentas de inteligência tais como o Infocrim, Fotocrim, COPOM On-Line além de metodologias como o Plano de Policiamento Inteligente que, utilizando conceitos internacionais de policiamento orientado ao problema, permitiu, por exemplo, que policiais passassem a compreender com mais velocidade e maior detalhamento o modus operandi, os locais e os horários em que os criminosos atuavam resultando no melhor planejamento e dinamicidade das estratégias e ações policiais no âmbito de cada cidade, cada bairro, cada rua de cada cidade.
Não por acaso, neste período a Polícia Militar mais do que duplicou o número de infratores presos ao mesmo tempo em que reduziu em mais da metade a taxa de letalidade policial (infratores mortos/presos) contribuindo significativamente para que o Estado alcançasse resultados extremamente positivos na área da segurança pública que podem ser exemplificados por meio da comparação dos dados criminais do último ano de 2018 com os relativos ao ano de 2001. Neste período houve, por exemplo, redução nos crimes de homicídios dolosos (80% na taxa por 100 mil habitantes), de latrocínio (46%), de roubo a banco (65%) e de roubos e furtos de veículos (71% na taxa por 100 mil veículos).
A contraposição de tais dados e informações com a ideia defendida pelo dois professores da PUC-Rio ouvidos pelo site Consultor Jurídico parecem conduzir a duas conclusões possíveis: ou o posicionamento de ambos, que defendem ser vedado às polícias militares a atividade de inteligência não corresponde à realidade ou ambos acreditam que os resultados alcançados em São Paulo são ruins para a sociedade.
O Decreto do Governo do Rio de Janeiro, ao que parece, nada mais faz do que regulamentar e sistematizar no âmbito Estadual uma atividade já existente – SISBIN, Subsistema de segurança Pública – buscando uma organicidade que permita melhor coordenação de esforços, otimização de meios e resultados mais efetivos.
A análise crítica, construtiva ou não, de todo e qualquer ato ou decisão governamental é um dos meios de exercício da cidadania e um dos pilares do sistema democrático. Especificamente em relação ao Decreto em questão, é obviamente importante a discussão sobre cada ponto da normatização, inclusive com a apresentação de outras formas pelas quais essa coordenação, sistematização e conjugação de esforços poderia ser aperfeiçoada. O posicionamento apresentado pelos professores é absolutamente salutar ao debate democrático, entretanto, dentro desta seara, entendemos que a opção por eles defendida é um retrocesso e altamente prejudicial ao todos os brasileiros. Isto porque, ao invés de otimizar esforços, pretendem limitá-los, estabelecendo uma relação de subordinação entre órgãos do sistema de inteligência, policiais ou não, contrariando um dos princípios basilares do SISBIN de cooperação entre seus membros.
Além disso, ao focar suas críticas e “vedações” apenas à participação da Polícia Militar no sistema de Inteligência daquele Estado, sem qualquer oposição, ao menos nas informações publicadas, à participação de outros órgãos não policiais a exemplo da Subsecretaria de Administração Penitenciária, a visão dos professores abre a possibilidade no sentido de que que seus posicionamentos sejam interpretados como decorrentes de uma visão preconceituosa a respeito da Instituição Policial Militar. Esta “seletividade” pode ser apenas casual e não significar “nada”, mas da maneira como foi exposta pode também explicar “tudo”.
Enfim, os argumentos acima buscam demonstrar que a alegada “exclusividade” na investigação criminal, não encontra eco nem nos posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (sob uma perspectiva jurídico-formal) tampouco na voz das ruas (sob uma perspectiva de legitimidade social). Além disso, mesmo que fosse reconhecida tal “exclusividade”, ela não se estenderia à atividade de inteligência policial (ou de segurança pública) que é, inclusive nos termos legais, distinta da atividade de investigação criminal. Não menos importante, ressalte-se que no plano prático e operacional, a atividade de inteligência desenvolvida pelas polícias militares no Brasil não são recentes e já demonstraram sua importância para obtenção de resultados positivos para toda a sociedade. Assim, ainda que respeitando a opinião divergente, entende-se que a ideia defendida pelos dois professores da PUC-Rio, além de contrária à lei e à Constituição e prejudicial à todos nós, não parece ser uma opção muito inteligente.
(*) Demetrius Gomes Lopes
Oficial da Policia Militar do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Especialista em Criminologia, Politica Criminal e Segurança Publica pela Universidade Anhanguera. Mestrando em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. Professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco.
(*) Rodrigo Garcia Vilardi
Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo
Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo
Vice-Diretor do Instituto Superior de Ciências Policiais da Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar.