Uso da força no Brasil: uma análise crítica ao Decreto nº 12.341/24 e seu papel no contexto normativo nacional e internacional

Por Frederico Afonso¹
 
Introdução
O uso da força por agentes de segurança pública é uma questão sensível e amplamente regulamentada tanto no âmbito nacional quanto internacional. Recentemente (23/12/2024), o governo federal publicou o Decreto nº 12.341/24, que tem como objetivo regulamentar a Lei nº 13.060/14, dez anos após sua promulgação. Apesar de sua aparente intenção de disciplinar o uso da força, este decreto apresenta diversos problemas, que serão analisados neste artigo.
 
O objetivo é demonstrar que o novo decreto não apenas deixa de inovar no campo normativo, como também extrapola os limites do poder regulamentar do Poder Executivo. Para tanto, esta análise se baseará em três eixos principais: os padrões internacionais estabelecidos pelo Código de Conduta para os Funcionários da Aplicação da Lei (1979) e pelos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo (1990), a Lei nº 13.060/14 e os limites constitucionais do poder regulamentar conforme previstos no artigo 49, inciso V, da Constituição Federal.
 
Adicionalmente, o artigo discute o impacto do decreto em relação ao pacto federativo, destacando os desafios de centralização normativa em um país marcado por profundas desigualdades regionais.
 
1. Princípios fundamentais do uso da força em perspectiva internacional
1.1. Código de Conduta para Funcionários da Aplicação da Lei (ONU, 1979)
O Código de Conduta da ONU estabelece que a atuação dos agentes de segurança deve ser guiada pelo respeito à dignidade humana e pelos direitos fundamentais. Além disso, proíbe atos de tortura, maus-tratos e uso arbitrário da força. 
 
Embora o Decreto nº 12.341/24 mencione princípios similares, como a proporcionalidade e a não discriminação, ele não detalha medidas concretas para implementar esses valores, especialmente em um contexto brasileiro marcado por desigualdades estruturais e preconceitos institucionais. É relevante destacar o artigo 3º do Código e os comentários subsequentes da ONU:
 
Art. 3º Os funcionários responsáveis pela
aplicação da lei só podem empregar a força
quando estritamente necessária e na medida
exigida para o cumprimento do seu dever.
 
Comentário: O emprego da força por parte dos
funcionários responsáveis pela aplicação da lei
deve ser excepcional. Embora se admita que
estes funcionários, de acordo com as
circunstâncias, possam empregar uma força
razoável, de nenhuma maneira ela poderá ser
utilizada de forma desproporcional ao legítimo
objetivo a ser atingido. O emprego de armas de
fogo é considerado uma medida extrema;
devem-se fazer todos os esforços no sentido de
restringir seu uso, especialmente contra
crianças. Em geral, armas de fogo só deveriam
ser utilizadas quando um suspeito oferece
resistência armada ou, de algum outro modo,
põe em risco vidas alheias e medidas menos
drásticas são insuficientes para dominá-lo.
Toda vez que uma arma de fogo for disparada,
deve-se fazer imediatamente um relatório às
autoridades competentes. (g.n.)
 
1.2. Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo (ONU, 1990)
 
Onze anos após, surgem os "Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo", que enfatizam a proporcionalidade e a priorização de métodos não violentos. Contudo, no Brasil, desafios estruturais como a falta de treinamento eficaz e a carência de equipamentos adequados comprometem sua implementação plena.
 
1.3. Manual de Formação em Direitos Humanos para as Forças Policiais (ONU, 1992)
 
O manual destaca que a formação dos agentes deve incluir uma compreensão dos direitos humanos e o uso proporcional da força, com a devida responsabilização em casos de abusos.
 
1.4. Guia do Formador para a Formação em Direitos Humanos das Forças Policiais (ONU, 2002)
Esse guia propõe:
Métodos participativos: incentivo à discussão de dilemas éticos. Contextualização: adaptação dos conteúdos às realidades regionais.
Foco na prática: uso de estudos de caso e simulações.

2. Princípios fundamentais do uso da força em perspectiva nacional

2.1. Portaria Interministerial nº 4.226/10
Essa portaria, alinhada aos padrões internacionais, estabelece diretrizes específicas, como:
Princípios orientadores: legalidade, proporcionalidade, necessidade, moderação e conveniência. Controle e responsabilização: relatórios obrigatórios em casos de uso da força que resultem em lesão ou morte.
 
2.2. Lei nº 13.060/14
Apesar de estabelecer os mesmos princípios que o decreto regulamenta, a demora de uma década para sua regulamentação prejudicou sua efetividade, resultando em aplicações desiguais entre estados e municípios.
 
2.3. Decreto nº 12.341/24
O decreto é uma repetição de normativas preexistentes, com pouca inovação prática. É evidente sua função mais simbólica do que efetivamente transformadora.
 
3. Limites ao poder regulamentar e o artigo 49, inciso V, da CF/88
A Constituição Federal estabelece que cabe ao Congresso Nacional sustar atos normativos do Executivo que excedam seu poder regulamentar. No caso do Decreto nº 12.341/24, destacam-se uma centralização excessiva ao desconsiderar a autonomia federativa, impondo obrigações adicionais, como a criação de comitês de monitoramento.
 
4. Segurança Pública x Ciência Policial
O decreto ignora a distinção entre segurança pública (serviços estatais) e ciência policial (campo de estudo técnico-científico). É essencial que futuras normativas incentivem a pesquisa e a formação científica das forças policiais.
 
5. Conclusão
As Nações Unidas (ONU) foram criadas em 1945, sendo o Brasil um dos seus fundadores² , ou seja, fazemos parte do “Sistema ONU” (ou Sistema Global ou Sistema Universal ou Sistema Onusiano). Dá ONU surgiram então pelo menos quatro normas (ou códigos, ou princípios, ou manuais) sobre o assunto. Já seriam, por si só, suficientes para disciplinar o assunto. O governo federal, ignorando as normas internacionais, em 2013, por meio do Ministério da Justiça (Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP), editou a
cartilha “Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade”³.
 
Não satisfeito (o governo federal), em 2018 foi elaborada outra cartilha, “Abordagem policial sob a ótica dos Direitos Humanos” 4 , elaborada pelo Ministério no âmbito do ObservaRio (Observatório de Direitos Humanos da Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro). Por óbvio, são “cartilhas”, sem o condão de regulamentar uma lei, como o objeto da discussão (Decreto nº 12.341/24), o qual, ao final, representa uma oportunidade perdida de avançar no tema do uso da força no Brasil.
 
Ao se limitar à repetição de diretrizes já existentes, sem considerar a autonomia federativa ou a ciência policial, ele falha em oferecer soluções práticas para os desafios da segurança pública. Ademais, sua centralização normativa e imposição de novas obrigações
levantam sérias dúvidas sobre a constitucionalidade do ato (aguardemos a análise do Congresso Nacional).
 
Por fim, é imperativo que futuros avanços normativos sejam embasados em princípios internacionais, no respeito ao pacto federativo e na incorporação de abordagens científicas, garantindo um sistema de segurança pública mais justo e uma ciência policial alinhada aos direitos humanos.
 
 
 
¹ Professor. Escritor Jurídico. Advogado (membro permanente da Comissão de Direitos Humanos da
OAB/SP e membro da Comissão de Direito Militar da OAB/Santos). Membro da Rede Brasileira de
Educação em Direitos Humanos (ReBEDH). Mastering of Science in Legal Studies, Emphasis on
International Law pela MUST University (Flórida/EUA). Mestre e Bacharel em Ciências Policiais de
Segurança Pública e de Ordem Pública. Mestre em Direito. Especialista em Direitos Humanos, gestão da
segurança e ordem pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Especialista em
Direitos Humanos e em Direitos Humanos Aplicado pela Escola Superior da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo. Atualmente leciona Direitos Humanos na pós-graduação do Damásio Educacional,
no curso CERS, no curso CP Iuris, na Escola Paulista de Direito e na Academia de Polícia Militar do Barro
Branco. É também o coordenador da pós-graduação em Direito Militar na Faculdade Legale. Coronel da
reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, foi chefe do Departamento de Direitos Humanos da
PMESP e é o atual diretor de coordenação institucional e política da FERMESP (Federação das Entidades
Representativas dos Militares do Estado de São Paulo) e diretor jurídico da DEFENDA PM (Associação
dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar). Dentre as inúmeras obras,
destacam-se em relação ao tema na organização e coautoria: “Direitos Humanos e abordagem policial”;
“Violência de gênero e grupos vulneráveis”; “Polícia Preventiva no Brasil - Direito Policial - Abordagens e
Busca Pessoal” e “Atividades de polícia e o uso da força”.
 
 
² O Brasil é um dos 51 membros fundadores das Nações Unidas, tendo depositado sua ratificação da
Carta da ONU em 21 de setembro de 1945.
 
 
³ BRASIL. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuação policial na proteção dos direitos humanos
de pessoas em situação de vulnerabilidade: cartilha. 2. ed. Brasília : Ministério da Justiça, Secretaria
Nacional de Segurança Pública, 2013.

 

4 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/outubro/mdh-participa-de-treinamento-da-
forca-policial-da-jamaica. Acesso em 25 dez. 2024.