Segurança pública e ciência policial: um debate com responsabilidade

Por Ernesto Puglia Neto¹ e Frederico Afonso Izidoro²
 
 
O maior jornal do país – O Estado de São Paulo (doravante Estadão) – publicou em seu “Espaço Aberto” (21 de dezembro de 2024, p. A4) o artigo “Insegurança pública e suas consequências letais”, de autoria do Dr. Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o qual assinou “apenas” como advogado.
O leitor “desatento” ou de “leitura rápida” talvez não saiba, mas o Dr. Mariz foi Secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo entre março de 1990 e março de 1991, tendo antes exercido o cargo de Secretário da Justiça. Também é um renomado advogado criminalista, com bacharelado e mestrado pela também renomada Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por tudo isso, é difícil compreender o texto produzido pelo eminente jurista (ou
talvez a dificuldade seja nossa).
 
Essa dificuldade decorre da junção de tantos temas em um único texto: das ações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) no último ano à tentativa de relacioná-las diretamente ao contragolpe de 1964, passando pelas eleições municipais e pelas Guardas Municipais (GCMs), culminando com uma conclusão quase surreal: diminuir a quantidade de armas em posse dos policiais militares que realizam a defesa da sociedade. A complexidade do texto é tamanha que torna difícil rebatê-lo amplamente, sendo necessário abordar os pontos separadamente.
 
PMESP e o golpe de 1964: uma leitura limitada
Dr. Mariz sugere que o modelo militar das polícias estaduais e do Distrito Federal decorre de uma escolha autoritária do regime de 1964. No entanto, tal interpretação ignora que a Polícia Militar, enquanto força auxiliar do Exército, tem suas bases históricas muito anteriores ao período citado. A própria Constituição Federal de 1988, após quase dois anos de debates pela Assembleia Nacional Constituinte, reafirmou esse papel no artigo 144.
A narrativa de que a desmilitarização resolveria problemas estruturais é equivocada, pois não considera os riscos de fragmentar uma estrutura que cumpre funções essenciais. Lembremos que as polícias militares possuem uma “estética militar”, e não um “militarismo das Forças Armadas”, sendo regidas por regulamentos disciplinares próprios e uma recente Lei Orgânica.
 
Para uma análise justa da PMESP, é fundamental considerar sua realidade pós-Constituição de 1988. Como bem ensina o ex-presidente Michel Temer, “o Poder Constituinte Originário cria o Estado tal como veio a ser positivado; antes disso, ele não existia”³. Assim, a PMESP atual deve ser avaliada por suas práticas recentes, e não sob a ótica de eventos históricos ultrapassados.
 
Segurança e eleições municipais: uma conexão forçada
Outro ponto que merece crítica é a tentativa de associar a segurança pública às eleições municipais. O autor sugere que a pauta eleitoral, centrada no aumento do efetivo policial e no fortalecimento das GCMs, é superficial e demagógica. Contudo, não reconhece que o debate eleitoral sobre segurança é essencial em um país onde essa é uma das principais preocupações dos cidadãos. O fortalecimento das Guardas Municipais é previsto na Constituição, desde que respeitadas suas atribuições – como a proteção de bens, serviços e instalações municipais. Equipá-las adequadamente não significa promover violência, mas oferecer ferramentas para que atuem com segurança e eficácia, sempre em prol da cidadania.
 
Segurança pública e ciência policial: complementaridade indispensável A segurança pública e a ciência policial são áreas distintas, mas profundamente interligadas. Desde 2020, as Ciências Policiais foram reconhecidas como área de conhecimento autônoma no Brasil, após o Parecer CNE/CES nº 945/2019 e sua homologação pelo Ministro da Educação. Este foi um passo histórico, impulsionado por demandas da PMESP, que contribui para o aprimoramento técnico e acadêmico das práticas policiais. Enquanto a segurança pública tem como foco a formulação de políticas preventivas e repressivas em prol da ordem social, a ciência policial busca desenvolver métodos, táticas e estratégias para melhorar a atuação policial. Ambas se complementam: a primeira orienta
estrategicamente as ações, enquanto a segunda refina tecnicamente sua execução.
 
Conclusão
A segurança pública é um desafio que exige abordagem multidimensional. Críticas são importantes, mas precisam ser construtivas e embasadas. Desmilitarizar a PM ou limitar seu armamento não resolverá os problemas estruturais; ao contrário, pode agravá-los. O debate sobre segurança deve considerar a realidade constitucional, a história e as demandas da sociedade, reconhecendo o esforço das instituições para melhorar sua atuação. Além disso,

é essencial fortalecer o campo acadêmico das ciências policiais, garantindo que a formação e a prática policial sejam orientadas por conhecimento especializado. Assim, construiremos uma segurança pública mais justa, eficaz e em consonância com os valores democráticos.

 

 

1 Professor. Escritor. Consultor na área de chefia e liderança. Doutor, Mestre e Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e de Ordem Pública. Especialista em Direitos Humanos pela USP (Universidade de São Paulo). Coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP). Foi Diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos da PMESP. É atualmente o secretário-executivo da DEFENDA PM (Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar).

 
2 Professor. Escritor Jurídico. Advogado (membro permanente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e membro da Comissão de Direito Militar da OAB/Santos). Membro da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos (ReBEDH). Mastering of Science in Legal Studies, Emphasis on International Law pela MUST University (Flórida/EUA). Mestre e Bacharel em Ciências Policiais de Segurança Pública e de Ordem Pública. Mestre em Direito. Especialista em Direitos Humanos, gestão da segurança e ordem pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Especialista em Direitos Humanos e em Direitos Humanos Aplicado pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Atualmente leciona Direitos Humanos na pós-graduação do Damásio Educacional, no curso CERS, no curso CP Iuris, na Escola Paulista de Direito e na Academia de Polícia Militar do Barro Branco. É também o coordenador da pós-graduação em Direito Militar na Faculdade Legale. Coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, foi chefe do Departamento de Direitos Humanos da PMESP e é o atual diretor de coordenação institucional e política da FERMESP (Federação das Entidades Representativas dos Militares do Estado de São Paulo) e diretor jurídico da DEFENDA PM (Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar).
 
3 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 25. ed. São Paulo : JusPodvim, 2023, p. 35.